Aviso: Este artigo faz parte de uma serie de artigos sobre a lingua portugueza. De modo a podermos ser fieis á causa que aqui appresentamos e para espelhar luz sobre este tema perdido, este artigo, e os proximos, serão escriptos com a graphia etymologica. Não obstante, preservaremos a graphia original dos auctores que citamos.
Em 1990 foi approvado um novo accordo orthographico com uma proposta que visa a unificação da graphia do portuguez, quer a variante do Brazil, quer a de Portugal. Desde então têm surgido grandes discussões daquelles conservadores que não querem perder o «c» e daquelles que são a favor do escrever como se falla.
Mas para os conservadores o «c» também é escrever como se falla. Ora, «reflectir» tem «c» para signalizar que o «e» é aberto, e portanto o «c» serve como accento. Mas será essa a razão da existencia do «c»?
Tenho especial carinho pela causa do antigo accordo, pelo seu character de preservação da tradição mas tambem pelas incongruencias do novo. De que paiz seria o povo egipcio senão do Egipto? Imagino que do Egito, poderia vir o povo «egicio», mas não qualquer povo com p.
Por quê «adepto» mas «adotar». «Ótimo» em vez de «optimo».
Existem os «signatários», contudo eles «assinam», sem g. E embora exista «signo» não existe «signal».
Estas differenças visiveis demonstram que o que se falla nem sempre está a par com o que se escreve, mas as palavras escriptas costumam estar sempre a par entre ellas. Mesmo assim, o «antigo» accordo não é logico, somente preserva a logica de algumas poucas palavras.
Como pode ficar inalterada a «invicta», mas a «victoria» perdeu o seu c? A «realidade» não é «rial», mas a creação é «criada», com i.
E por que escrevemos «e» e pronunciamos com /i/? Mesmo em palavras como «campeão», «cardeal», «cadeado», ...
Por que recebemos «indemnizações» e não somos «condemnados»? E já não existem dias «solemnes»?
O «c» é histórico, vem dos antigos etymos, não tem valor phonetico algum. A razão de conservar o «c» deve ser pela preservação da tradição etymologica e não por defesas phoneticas.
O «e» é puramente etymologico também. O nosso «e» vem do «et» latino, e em vez de seguirmos o exemplo dos hespanhoes com o «y» preferimos seguir a nossa vertente, a etymologica.
Uma flor afastada do Lacio
A lingua é o systema pelo qual uma Nação expressa a riqueza do seu legado. Portugal, sendo um dos filhos de Roma, herdou de igual modo o Latim. E, portanto, antes do portuguez ser considerado lingua era tido como um dialecto.
Já na altura dos trovadores o portuguez era escripto com base nos etymos latinos e gregos. E esta tradição nunca se alterou. O portuguez continuou a ser escripto com base na etymologia.
Bem conhecida é a estrofe de Camões onde elle diz:
Sustentava contra elle Venus bella,
Affeiçoada aa gente Lusitana,
Por quantas qualidades via nella
Da antiga tam amada sua Romana;
Nos fortes corações, na grande estrella,
Que mostràrão na terra Tingitana:
E na lingoa, na qual, quando imagina,
Com pouca corrupção cre que he a Latina.1
Em 1883 surgem estudos de phonetica e de phonologia portugueza do dialecto de Lisboa, pelos esforços de Gonçalves Vianna. Até que em 1885, elle propõe, junto do orientalista Vasconcellos Abreu, uma orthographia reformada e simplificada baseada nestes estudos. A ideia repercute e varias pessoas adoptam a «graphia simplificada». Foi o começo dum movimento para uma orthographia baseada nos phonemas. Uma proposta ousada e moderna, differente de tudo aquilo que alguma vez se havia visto. Em vez da lingua ser estudada pelas palavras, seria pelas lettras, onde cada lettra representaria um som.
Na orthographia simplificada, «lagryma» viria a ser «lágrima», «realeza» viria a ser «rialeza», «patriarcha» viria a ser «patriarca», «phleugmatico» viria a ser «fleumático» e nem a propria «orthographia» passaria despercebida, pois tornar-se-ia «ortografia». Toda a lettra que não se lesse cahiria em prol de uma orthographia representativa do que se fala.
O sentimento dos muitos oppositores do accordo orthographico de 90, onde se perde a formas das palavras, é o mesmo sentido por Teixeira de Pascoaes com a anterior reforma orthographica:
Na palavra lagryma, (...) a forma do y é lacrymal; estabelece (...) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio... Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal.2
E ainda o Prof. Alexandre Fontes:
Imaginem esta palavra phase, escripta assim: fase. Não nos parece uma palavra, parece-nos um esqueleto (...) Affligimo-nos extraordinariamente, quando pensamos que haveriamos de ser obrigados a escrever assim!3
Certas palavras, como a experiencia de hoje nos elucida, permaneceram inalteradas, como realeza. Houve mesmo certos casos que permaneceram também, como o duplo «ss» e o duplo «rr» — embora no Brazil já se discuta o fim do «ç» e do «c», para uma graphia do genero: «asosiar» em vez de «associar».
Outro vestigio é mãe, mais e pães. Mãe permaneceu com «e» por vir de «mater»; pães por vir de «pane(m)»; e mais por vir de «magis». Se fosse para seguir o modelo phonetico, escrever-se-ia ou mãis, pãis e mais ou mães, pães e maes.
Mas a nossa lingua também soffria problemas, e um delles era a falta da padronização da lingua. Embora todos escrevessem com a graphia etymologica, havia maneiras differentes de escrever certas palavras devido a discussões historicas e linguisticas. Com isto surge o Prof. Alexandre Fontes, já tardiamente, tentando mudar o rumo da orthographia numa tentativa de unificar a escripta etymologica com o seu livro «A Escripta Nacional ou A Orthographia Portugueza Etymologica».
A lingua, nota-se: ouve-se; mas vê-se, também. Tem os sons: ouvem-se; tem as graphias: vêem-se. Lá porque os Hespanhoes, e os Italianos, e estes e aquelles e aquell’outros, escrevem assim, ou assado, ou cozido, não é razão para que nós não escrevamos frito ou de escabeche. Cada terra com seu uso, cada povo com as suas tradições, cada raça com a sua idiosyncrasia, cada gente com a sua lingua, cada lingua com a sua escripta, cada escripta com a sua feição characterizadamente etymologica, vernacula, tradicional; e por conseguinte sua, diversa da feição characterizadamente etymologica, vernacula e tradicional das demais. É esta a verdade.4
A lingua empobrecida e confusa
O Accordo Orthographico de 1990 só veio a provar estas affirmações.
Vejamos ainda como a mesma palavra escreve-se de modo differente em Portugal e no Brazil, devido á pronuncia differente. «Facto» em Portugal, «fato» no Brazil; mas um «fato» em Portugal também existe, só que com significado differente.
Porque seguindo-se uma escripta simplificada, que se filiaria forçosamente na prosodia, como esta tende a modificar-se vertiginosamente, se exactamente a não fixam pela escripta, deveria haver uma mudança ou reforma orthographica, de dez em dez annos, por exemplo, e ainda uma orthographia especial, para cada provincia, para cada povoado quasi.
Prophetico… De onde vem a phobia de lettras que não se pronunciam? Viu-se no novo accordo e foi a razão da Reforma Orthographica. A Prof. Carolina Michaëlis chega a ousadamente affirmar:
Eu estou, pelo contrario, persuadida da necessidade de uma reforma, por amor aos humildes e pequeninos, que vi e vejo lutar árduamente (e quantas vezes sem resultado) com as dificuldades, incongruencias e contradições da ortografia reinante, por demais erudita, complicada o desonesta.
Por amor aos humildes e pequeninos! De modo algum poderei julgar as intenções da Prof. Carolina Michaëlis, dizendo que ella deshonestamente assim o affirmou, contudo o tempo provou esta affirmação como falsa.
As linguas mais falladas por não-nativos actualmente são linguas etymologicas e ideographicas (menciono isto pois sempre se accusou as graphias etymologicas de serem ideographicas). O francez e o inglez são exemplos de linguas que preservaram a sua graphia etymologica. Mas é curioso analisar o porquê — vejamos a graphia ingleza.
A lingua ingleza não tem uma Academia5 que rege a maneira como se escreve, nem tem uma orthographia padronizada, mas tem os chamados «style guides» que padronizam até certo ponto a lingua. Surgiram em varias epochas, dos intelectuaes da lingua, propostas de simplificação do inglez também. Noah Webster propôs escrever «ake» em vez de «ache», «soop» em vez de «soup» e «iz, waz» em vez do «is, was». Muitas outras propostas medonhas surgiram como escrever «Wen reeders» em vez de «When readers», mas estas propostas para ajudar os «humildes e pequeninos» não se aguentaram ao teste do tempo. Como? Se o inglez não tem uma Academia para contrariar e estabelecer regras, e nem a propria Monarchia Britannica póde interferir, quem é que decidiu perpetuar a «difficil, incongruente, contradictoria e deshonesta» graphia etymologica?
Os proprios humildes e pequeninos.
Foi a classe humilde e opprimida (como a Prof. Carolina Michaëlis pareceu querer indicar) que continuou a usar lettras repetidas, lettras silenciosas, e todas as «incongruencias» da lingua ingleza.
E mesmo que os humildes e pequeninos não tivessem educação para escrever a orthographia etymologica (o que seria pouco provavel nos tempos atuaes), não faria mal algum escrever a com uma graphia simplificada, se esta fosse reservada a conversas e notas pessoaes.
A famosa phrase de Fernando Pessoa «Minha Patria é a lingua portugueza» vem deste mesmo pensamento:
Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portugueza. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente. Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.6
Parece-me, segundo uma optica mais optimista, que a Prof. Carolina Michaëlis encontrou a solução errada para um problema real — o problema do analphabetismo. A Prof. pensou que se simplificasse a lingua, simplificar-se-ia o processo de apprendizagem das creanças. Não foi esse o caso.
O que resolveu a crise do analphabetismo foi o «Plano dos Centenários» onde se construiram 7000 escolas e 12000 salas de aula novas. Durante o Estado Novo, a taxa de literacia subiu, entre 1926 e 1950, de 38.2% para 58.6%. Entre as crianças de 10 a 14 anos, a taxa de analfabetismo diminuiu, entre 1930 e 1950, de 58% para 24%7.
Quem pensa que trazer esta discussão seja desnecessario, ou até um attentado à lingua já estabelecida e moderna, vejamos como seria o francez se usassem uma escripta phonetica como nós:
Em francez etymologico:
De son regard longuement vert
la lumière tombait comme une eau sèche,
en de transparents et de profonds cercles
de force fraîche
Em francez phonetico:
De sô regar lôgemâ vèr
la lumyèr tôbè kom un ò sèše,
â de trâsparâ é de profô sèrkle
de forse frèše.8
Quasi impossivel a adaptação. A graphia phonetica faz um francez que perdeu a realeza, perdeu a historia, perdeu a sua origem. E não pretendo theorizar que os republicanos com a reforma ortographica, intencionalmente ou não, visaram a destruição da Patria9. Se foi intencional ou não, não é o ponto de discussão aqui pretendido. Directamente ou indirectamente collaboram na castração da nossa lingua, mas fundamentalmente, da nossa cultura.
O nosso uso da Graphia Etymologica
Para facilitar a comprehensão e integração dos nossos leitores no pensamento que aqui propomos, na «CONTRA-REVOLUÇÃO» uso a graphia phonetica segundo o antigo accordo, com o uso especial do trema (pois se for para usar a phonetica deviamos escrever proïbido e não «proibido», do mesmo modo que alguem pronuncia saúde e não «saude»). Mas todo o patriota tem o dever de amar a sua lingua, preservar e perpetuar esta sua tradição.
No Manual sobre a Esthetica, os Tradicionalistas Lusitanos mencionam precisamente isto:
A reforma e os accordos orthographicos foram, de modo similar á implantação da Republica, um golpe artificial ás instituições da Nação. É essencial voltar á orthographia etymologica. Primeiro porque ella approxima-nos dos nossos antepassados — isto ajuda o povo portuguez a comprehender com maior facilidade as origens da sua lingua e tambem compreender as linguas archaicas, como o latim e o grego, que sempre se encontraram em grande relevancia.
O Fernando Pessoa subscreve a uma ideia que a lingua escripta tem que seguir os padrões da aristocracia:
A linguagem fallada é popular. A linguagem escripta é aristocratica. Quem apprendeu a ler e a escrever deve conformar-se com as normas aristocraticas que vigoram n'aquelle campo aristocratico.10
Este é o portuguez. O portuguez propriamente dicto. Esta é a sua forma visivel. Muitos poucos portuguezes têm conhecimento della, e conhecem somente o seu «esqueleto».
Faço um appello a todos os patriotas e simpatizantes da causa de Portugal: nos meios que se encontrarem disponiveis, usem e abusem da graphia etymologica. E para os timidos, façam questão de a estudar e practicar em notas pessoaes.
Nada mais posso affirmar senão o que affirmou o Prof. Alexandre Fontes:
E eu, continuarei a ser aquelle, que julgou poder ter uma ideia... Essa ideia, foi a de ser util á lingua portugueza, e talvez áquelles que a escrevem e fallam: que todos o reconheçam, ao menos, é a minha unica pretenção.
O uso da graphia etymologica faz parte da Nova Alvorada de Portugal. Se escrevemos actualmente com a graphia simplificada, esta graphia é, e sempre será, o portuguez completo — que tal como o Portugal sob a Republica, vê-se como um corpo nu, incoberto e frio, com a sua realeza e dignidade despojadas, com as suas vestes roubadas e com a sua fé assassinada.
Nos cum Prole pia, benedicat Virgo Maria.
(Lusiadas, Canto I, estancia 33) Usando, para comparação com a escripta etymologica corrente, a graphia original de Camões em 1572.
(Revista A Águia)
(A Questão Orthographica, Alexandre Fontes)
(Escripta Nacional)
O Prof. Alexandre Fontes em relação á Academia: «Queixam-se todos, de que não haja por cá um diccionario da Academia, como o ha em França. É isso um facto para lastimar, partindo da doce esperança de que a Academia faria alguma cousa de valor e de senso, esperança de certo natural.» (Escripta Nacional)
(Livro do Desassossego)
(Candeias, 2004)
(Une orthographe phonétique adaptée au français, Jean Adolphe Rondal)
Pátria, segundo o entendimento Tradicionalista, de cultura e legado
(Pessoa Inédito)