As incessantes Trovas
Num tempo onde se dá preferência a canções estrangeiras e a uma tradição portuguesa inautêntica criada recentemente, Portugal esquece-se do seu canto e da sua origem. Os movimentos que surgiram para destronar estas belas tradições da Pátria não são novos. Pelo contrário, começaram faz muito tempo. E, gradualmente, foram apagando da memória e da práctica da Nação estas exposições da nossa cultura.
Portugal, quer musicalmente, quer literariamente, sempre foi uma Nação Trovadoresca, de tradição riquíssima, cuja voz sempre ressoou a alma poética da grei.
Segundo Teófilo Braga, o trovadorismo surge no sul da França, com origem nos antigos cantos gauleses que eram transmitidos por passa-palavra.
Estes cantos vulgares dos costumes gauleses propagaram-se nas camadas populares, sempre condenados como desprezíveis, até que um facto político veio influir na importância repentina, isto é, na imitação e importância literária que receberam.1
Este facto político foram as Cruzadas. Estas canções anteriormente passadas por tradição oral, passam agora a ser escritas, coincidentemente com a passagem do latim vulgar falado para o latim vulgar escrito; e através das Cruzadas espalham-se por toda a Europa.
Cantar autóctone da Lusitânia
Na realidade, o trovadorismo sempre esteve presente em Portugal, mesmo antes da divulgação dos cantos gauleses pela Europa. Embora este movimento tenha chegado ao nosso território através das mãos dos guerreiros francos que vieram auxiliar na Reconquista, as cantigas que foram cantadas pelos segréis e os jográis, quando não eram compostas pelos nossos trovadores, eram retiradas do cancioneiro popular que não era escrito nem registado.
António Sardinha a respeito afirma o seguinte:
O que sei — e é o que importa — é que os temas líricos do cancioneiro da Vaticana apresentam vestígios mais arcaicos do que em nenhum outro país românico, não sendo os personagens, tomados da sociedade cavalheiresca, mas do povo, nem o amor dos nossos trovadores pautado pelas teorias cortesanescas da Provença.2
Como refere o Dr. Sardinha, prova disto são as autóctones cantigas de amigo que se autonomizam das cantigas de amor. Para Afonso Botelho, uma característica natural do português, que o diferencia dos outros povos, é a existências de heróis femininos.
Na odisseia lusitana ou galaico-portuguesa da saudade, que, tanto quanto enxergo, é a única que, como odisseia, existe, os heróis são femininos. Imediata e definitiva diferença da odisseia homérica, diferença que vem na sequência da natureza espiritual da saudade.3
E não obstante, tal como Afonso Botelho coloca, «a ausência do amigo obriga a amiga a falar» e portanto não demonstra exclusividade feminina ou muito menos uma sociedade matriarcal. «Pelo contrário, o papel da amiga é o de ligar saudosamente os dois amantes e de restabelecer a unidade ameaçada pelo tempo e pelo espaço.»4
Para Afonso Botelho, esta é a razão do não uso da palavra «mátria», mas do uso no feminino da palavra pátria. Esta revelação concede ainda a predisposição e importância da devoção mariana em Portugal.
A curiosa anulação do pai nas cantigas de amigo, enquanto a mãe é uma referência normal de diálogo ou mesmo de mando, não lhes empresta, por si, qualquer carácter matriarcal.
Também a imagem mariana preside a toda a poesia medieval portuguesa e, no entanto, a Virgem Maria assume plenamente a relação de Intermediária.5
Este é o grande carácter das canções de amigo, que segundo o mesmo autor são o traço característico do trovadorismo português em oposição ao trovadorismo ocitano.
Nascidas as demais delas na contemporaneidade dos «espirituais» e no verbo do Rei D. Dinis, seu natural adepto, terão, nesse movimento e na específica cultura portuguesa, razão para se autonomizarem das cantigas de amor cortês, invasoras da cultura europeia da época. Mais uma vez a tenacidade deste baluarte cultural lusitano defendeu uma singularização contra a avalanche da civilização provençal, síntese das novas doutrinas que se impunham no «lang d’oc», a cortar cerce os costumes e os valores da cultura feudal.6
Portugal, altamente rural e de intensa vida pastoral e agrícola, cantou e declamou as suas trovas, preferindo estas à escrita em prosa, e usou-as para se tornar o expoente da devoção mariana e do trovadorismo. Teófilo Braga retrata as nossas terras como uma «Arcádia temperada pela devoção católica».
Os hábitos da sua vida própria por si criavam os cantares actuais, derivados das situações amplas de quem trabalha nos campos, baila nos dias santificados e se diverte com romarias. Era uma Arcádia temperada pela devoção católica.7
Apartir daqui estebelece-se o trovadorismo como literatura e cantar nacional. Movimento importantíssimo, que sem ele, poderia não haver português escrito, ou quem sabe, falado. Evidenciou-se como o mais alto expoente da expressão portuguesa, repercutido até pelos grandes nomes de Gil Vicente e Camões.
E depois acharam esta Arte, que Maior se chama, a Arte Comum, creio, nos reinos de Galiza e Portugal, aonde não há que duvidar que o exercício destas ciências mais que em nenhumas outras regiões e províncias de Espanha se acostumou.8
O trovadorismo, e a Galiza em si, têm especial importância à medida que a Reconquista progride. A Galiza é tida como o centro intelectual de reacção às invasões muçulmanas, e por isto, o trovadorismo torna-se, de certo modo, o canto católico e reaccionário.
É nas terras Galego-Portuguesas que se estabelece a reacção ao mundo do Islão, tendo como bastião a cidade sagrada de Santiago de Compostela. É por conta disto que os reis estrangeiros e a nobreza de outros países cantavam estas cantigas na língua galaico-portuguesa — representando, para eles, o alicerce firme da Cristandade.
Adverte, contudo, António Sardinha, invertendo o termo galego-português:
Mas, recorrendo ao fio da minha exposição, tão longa já, eu pregunto agora se, conservando-se na região do Guadiana ao Promontório-Sacro o foco mais puro da autóctonia peninsular, não seria antes das gentes empurradas dali para norte do Tejo com as sucessivas ocupações exóticas que teria partido o profundo impulso lírico que hoje se toma como filho do génio galaico-lusitano?
(…) Não se nos mostrará de futuro a Galiza como uma esfera de influência da genialidade lusitana, nunca como um ponto irradiador dela?
Sobre este assunto, pela sua importância e extensão, reservo um artigo no futuro, e portanto não tenciono mais argumentar sobre as diferenças dos lusitanos e dos galegos. Apenas apresentar, como António Sardinha acredita, que o lirismo português tem origem nos lusitanos e parte para os galegos, não pelo contrário.
Trovas acompanhadas
Havia três tipos de cantigas trovadorescas: As cantigas de amor — onde os trovadores declaravam amor à sua «senhor»; as cantigas de amigo — canções populares que expressam o amor duma donzela pelo seu amigo; e as canções de escárnio e maldizer — que diferem entre si, mas são sátiras e críticas a pessoas ou determinadas situações.
Estas trovas eram por vezes declamadas, por vezes acompanhadas por intrumentos. Estes instrumentos continuaram a ser usados em Portugal, evoluindo e mudando de formato. Na Idade-Média, um dos instrumentos usados entre os trovadores e os menestreis foi a Cítola, descendente da Cítara.
Desta Cítola surge a Guitarra Portuguesa. Há quem formule outras teses sobre a formação e origem da Guitarra Portuguesa, mas o que sabemos é que o instrumento ganhou uma certa popularidade, pois em 1796, o Mestre-de-Capela da Sé do Porto António Silva Leite escreveu o primeiro Método para aprender a «Guitarra Portuguesa», nome que deu a este instrumento.
A guitarra tem um alto papel na vida do homem do sul e no romance. Caverel refere que os portugueses deixaram dez mil guitarras em Alcácer-Quibir, o que, naturalmente, é blague; e tanto no romance brasileiro de José de Alencar como na ópera Guarani dele extraída, figura Cecília, filha de D. António de Mariz, cantando uma xácara, acompanhada por aquele instrumento. Maria Luiza, mulher de Carlos IV de Espanha, tocava guitarra na perfeição, e tivera por mestre o Frei Miguel Garcia, apelidado o Padre Basilio, organista de um convento cisterciense madrilenho. Conta Camilo Castelo-Branco, que esta rainha adúltera, ainda simples princesa de Parma, se apaixonara de Manuel Godoy por causa da mestria com que ele tocava guitarra e cantava. Carlos III mandou-o sair de Madrid, logo que deu lento dos efeitos cupidineos dos bordões e da prima na pessoa da nora.910
Este trecho recolhido da História do Fado de Pinto de Carvalho é interessante pois vem duma análise baseada numa pobre tradução — o que chamamos em Portugal de viola, em outros países é chamado de guitarra. Este é o caso o relato de Caverel. De qualquer modo, demonstra a preferência do português pela Viola Dedilhada e pela Guitarra Portuguesa.
E desde estes tempos a Guitarra Portuguesa não deixou de ser tocada. Sabe-se que este célebre instrumento chegou a grande popularidade, enquanto era acompanhado por viola, e tocava lumduns ou modinhas. Não obstante, acabou por encontrar um grande rival: o piano.
O Fado e o Trovadorismo
É, segundo alguns, neste contexto que surge o Fado — Fado com «f» maiúsculo, pois fado com «f» minúsculo é sinónimo de sina, futuro e sorte. Não há consenso sobre onde surgiu o Fado. Há quem diga que o Fado vem do Lundum africano, que foi importado para Lisboa através dos escravos. Outros dizem que era a Canção dos Marinheiros do tempo dos descobrimentos.
A primeira teoria, que o Fado viria do Lundum africano, tem um certo interesse político para aqueles que querem criar uma visão de um Portugal multicultural, mas é também uma análise histórica terrível. Basta apenas ouvir Lundum para entender que qualquer semelhança é pura coincidência.
Quanto à segunda teoria, aparecem algumas questões, que decidi recapitular da página de José Lúcio Ribeiro de Almeida acerca destas teorias sobre o Fado:
Se o Fado tem origem marítima, porque é que não existem registo na Escola de Sagres (…) sobre o Fado?
Se tem origem marítima devia ter sido baptizado de “MAR” o e seu cantor ou tocador de “Marinheiro”. Em todos os portos portugueses devia haver Fado. (…)
A talho de foice, não sei se por acaso já leu “Os Lusíadas” de Luís Vaz de Camões (1524! – 1580). A palavra "fado" aparece escrita 17 vezes. Se quer um exemplo basta ler o canto I, estrofe 28 (Prometido lhe está do fado eterno…)
Será que Luís de Camões já era Fadista?11
Esta análise também se aplica àqueles que afirmam que a origem do Fado são os cantos mouriscos. Se assim fosse, porque é que o Fado nasceu em Lisboa e não no Algarve ou mesmo na Andalusia onde os mouros permaneceram por mais tempo?
Há somente mais uma hipótese que é digna de menção. A hipótese de Mascarenhas Barreto: o Fado tem origem no antigo trovadorismo.
Segundo este estudioso, o Fado teria as suas raízes na Idade-Média, cujas músicas conservaram as características presentes no Trovadorismo. As cantigas de amigo assemelham-se com os temas retratados no Fado lisboeta; as cantigas de amor, onde um trovador expõe o seu amor à sua senhor, pode ser identificado com os amores de estudante e as serenatas presentes no Fado coimbrão; e mesmo as cantigas de escárnio e de maldizer encontram voz em algumas letras de Fado como em sátiras políticas e sociais.
Algo que sustenta esta teoria é a origem da palavra Fado. Segundo uma teoria viria do francês antigo «fatiste» que significa poeta, e não do «fadista» assassino, que tratava do «fado» (destino) de alguém.
O povo português tem voz, e precisou por todos estes séculos cantar os seus infortúnios e humildes vitórias. Serviu-se das trovas, agora serve-se do Fado. Esta é a realidade particular que todas as teses demonstram. E no fundo, podemos ter a certeza que o Fado recebeu elementos dados pelo povo, pelos marinheiros e pela aristocracia (isto pode explicar os argumentos colocados pelas outras hipóteses), precisamente igual ao Trovadorismo.
Todas mostram como estes cantos trovadorescos evoluíram ao longo da história e ganharam voz no Fado — mais que isto, demonstram como a voz do português subordinou primeiro o trovadorismo, e agora já trovadora, subordina o Fado. Essencialmente, foi isto mesmo que ocorreu com o Trovadorismo, um estilo não-autóctone que recebeu o estilo português e padronizou as cantigas populares portuguesas, dando-lhes um lugar de prestígio pela Europa fora.
E a mesma adaptação, que ocorreu com o trovadorismo, onde se foi adaptando às nuances locais, também o Fado o fez, criando um estilo próprio em Coimbra (ou, sendo adoptado por este estilo próprio já presente), a Canção de Coimbra.
E creio que já se vê o mesmo a ser aplicado ao Canto Alentejano, onde muitos já cantam acompanhados pela Guitarra Portuguesa. Estas canções locais devem permanecer na voz do português e sem medo de serem cantadas ao som da Guitarra Portuguesa e da Viola Dedilhada.
E realmente, o Fado pode ser a canção de Lisboa que se nacionalizou, como José Lúcio afirma. Mas tal podia ter acontecido com a canção de qualquer outra localidade. Pois assim como aconteceu com o Fado, por melhor representar a alma portuguesa, poderia ter acontecido com qualquer outra canção local de Portugal, se melhor representasse a alma portuguesa.
Este sentimento próprio, que já era passado nas trovas, só foi tornado claro e evidente nos séculos atuais, após toda a turbulência deste estágio da Decadência de Portugal. Isto é a Saudade. O Fado, se tivesse surgido segundo a hipótese de José Lúcio, onde os «fadistas» cantavam as suas proezas, evoluíu naturalmente para chorar a saudade.
Oposição dos tradicionalistas ao Fado
Os Integralistas Lusitanos criticavam muito o Fado por ser um estilo recente.
Quanto ao Fado que hoje passa por ser o canto nacional por excelência, diz Michel’angelo Lambertini que em dicionários anteriores à última metade do século XIX não encontrou a palavra Fado no sentido musical.
Um integralista não poderá portanto conceder foros de nacional a uma canção popularizada nestes últimos 50 anos, visto ela ter nascido e se ter desenvolvido exactamente quando nós nos desnacionalizavamos.12
O mesmo é dito na introdução da «Questão Ibérica» onde os integralistas conferem à figuração de Camões a cantar o Fado um carácter de «roubo do sentido da ordem social e que nos intervalos da sesta se envenena com uma imprensa de fadistas».
Eu creio que a desqualificação do Fado como cantar nacional ou mesmo como cantiga autóctone foi muito repentina e cedo demais na vida dos Integralistas, onde muitos estavam ainda a purificar-se dos erros republicanos e revolucionários do pensamento da sua vida passada.
E não creio que os argumentos usados pelo Dr. Luís Freitas Branco sejam válidos para desqualificar o Fado, que de qualquer modo, neste humilde trabalho já tentei desmentir.
Reerguer da voz nacional
No que toca à Contra-Revolução, o propósito deste artigo, além da análise histórica (que é muito complexa no que toca ao Fado por não haver certezas absolutas) é compreender como a música é o reflexo da idiosincrasia portuguesa e como influencia a própria população.
É ainda possível traçar um paralelo, pois onde antigamente havia Santiago, agora há Fátima. (Isto sendo, outra vez, a demonstração da importância feminina e saudosa na história de Portugal que hoje a Igreja inteira confirma com os seus dogmas). Tal como na altura eramos o bastião da Cristandade contra o inimigo muçulmano, hoje somos o bastião da Cristandade contra o inimigo revolucionário — e mais certeza disto não podemos ter, pois Nossa Senhora assim o confirmou ao dizer:
Em Portugal se conservará sempre o dogma da Fé.
Aqui se coloca o Fado. Aqui se colocam as Trovas. Há, de facto, um grande retorno das canções populares, mas não é suficiente para combater o grande mal do estrangeirismo que assola Portugal.
Somos um povo que está a perder a sua língua, a sua literatura e as suas canções — estamos a perder a Pátria. O que será de Portugal?
De certo modo comprova-se a afirmação de Fernando Pessoa quando ele diz que «minha pátria é a língua portuguesa».
Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. (…)13
Realmente poderiam invadir o território português e não se perderia Portugal, desde que não tocassem nas suas canções e na sua língua (a respeito desta, escrevemos um artigo especial para a compreensão desta citação de Fernando Pessoa.)
Mas quando tocam nelas, então, o quão grave é, que sem invadir a nossa terra, já invadiram o nosso país, e até a nossa alma. Uma invasão mais perigosa que qualquer uma exercida por imigrantes, que tantos grupos hoje em dia dispõe de toda a sua concentração e pânico.
O trovadorismo foi, e nos tempos de hoje o Fado será, a canção da contra-cultura. Contra a cultura modernista, liberal, desordeira e revolucionária. Os republicanos e socialistas muito apreço deram ao Fado para poder cantar as suas ignominiosas vitórias. É preciso reclamar a cantiga portuguesa e restaurar Portugal como o bastião da Contra-Revolução.
A contar do século XVI dá-se na literatura portuguesa um fenómono particular e interessante, o da separação progressiva que se estabelece entre o escritor e o povo.14
E é desta separação, da intelectualização da cultura nacional, que o povo decide optar por coisas mais baixas, inferiorizando-se e consumindo a cultura estrangeira degradante.
A Nova Alvorada é fundamentalmente o reerguer da Voz Portuguesa. Sem isto não se pode esperar restaurações políticas nem mesmo elevação espiritual. Trinem as guitarras, batam os adufes, cantem e declamem o Fado e as Trovas! Assim voltará Portugal.
Nos cum Prole pia, benedicat Virgo Maria.
(História da Literatura Portuguesa, Teófilo Braga)
(A Questão Ibérica)
(Da Saudade ao Saudosismo, Afonso Botelho)
(Da Saudade ao Saudosismo, Afonso Botelho)
(Da Saudade ao Saudosismo, Afonso Botelho)
(Da Saudade ao Saudosismo, Afonso Botelho)
(História da Literatura Portuguesa, Teófilo Braga)
(Marquês de Santillana)
(História do Fado, Pinto de Carvalho)
Quem desconhecer os seguintes conceitos: bordão são as cordas mais grossas, e portanto mais graves, dum instrumento de cordas, enquanto primas são as cordas mais delgadas, e portanto mais agudas.
(Questão Ibérica, Luís Freitas Branco)
(Livro do Desassossego, Fernando Pessoa)
(História da Literatura Portuguesa, Teófilo Braga)